uma carta aberta à mar

gabriella gomes
2 min readOct 24, 2022

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Birgit Jürgenssen

o modo como saímos do inapreensível
sal marinho

para o sal nos cabelos
há dias marinando no

seu próprio suor de fruta seca.

da cidade submersa

à poética da míngua.

sim, porque há algo de fixidez nessa imagem
de uma cidade engolida

pelas águas,

mas a míngua parece o movimento amoroso
de um corpo tolhendo-se.

a mulher à mingua.

pequeno estado de cesura:

busco-te, como pedes, sem esperança.

perdi o fio vermelho, pressinto um
animal que o corta com os dentes.

longe, a imagem da casa mumificada
pelo fio, à volta preto e branco como

uma fotografia.

pressinto a imagem de um gato, que
chega a comer um pedaço

do fio, mas seria incapaz de comê-lo
inteiramente. agora incapaz de digerí-lo.

[pequena anotação à margem:

como pode a mulher ser uma cidade se
a mulher não participa dessa economia?

um antigo exercício de tentar vê-la
por entre as frestas

da língua, as festas da língua.

a mulher parece acumular sinais
siameses, pressinto que ela percebe

e exibe-os como lêndeas,

esse sal do reino animal.]

algo como um copo d’água de vidro incolor,
algo no limiar do visível.

algo que guarda a imagem
desse copo na sua inevitável quebra azul.

pequeno parêntese: coincidência ou não,
dessa vez o sangue não me embrulhou

o estômago.

a abertura à mar aqui trata-se de uma espécie de pastiche à sal, o novo livro de mar becker publicado pela editora assírio & alvim (2022).

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