uma carta aberta à mar
o modo como saímos do inapreensível
sal marinho
para o sal nos cabelos
há dias marinando no
seu próprio suor de fruta seca.
da cidade submersa
à poética da míngua.
sim, porque há algo de fixidez nessa imagem
de uma cidade engolida
pelas águas,
mas a míngua parece o movimento amoroso
de um corpo tolhendo-se.
a mulher à mingua.
pequeno estado de cesura:
busco-te, como pedes, sem esperança.
perdi o fio vermelho, pressinto um
animal que o corta com os dentes.
longe, a imagem da casa mumificada
pelo fio, à volta preto e branco como
uma fotografia.
pressinto a imagem de um gato, que
chega a comer um pedaço
do fio, mas seria incapaz de comê-lo
inteiramente. agora incapaz de digerí-lo.
[pequena anotação à margem:
como pode a mulher ser uma cidade se
a mulher não participa dessa economia?
um antigo exercício de tentar vê-la
por entre as frestas
da língua, as festas da língua.
a mulher parece acumular sinais
siameses, pressinto que ela percebe
e exibe-os como lêndeas,
esse sal do reino animal.]
algo como um copo d’água de vidro incolor,
algo no limiar do visível.
algo que guarda a imagem
desse copo na sua inevitável quebra azul.
pequeno parêntese: coincidência ou não,
dessa vez o sangue não me embrulhou
o estômago.
—
a abertura à mar aqui trata-se de uma espécie de pastiche à sal, o novo livro de mar becker publicado pela editora assírio & alvim (2022).